Uma carta para Bernard Shaw

No texto abaixo, na verdade um artigo publicado na imprensa inglesa na década de 1920, Hilaire Belloc, um escritor franco-britânico católico que junto com G.K. Chesterton foi também um bastião contra o crescimento comunista e socialista nas terras da Rainha, faz menção a outro artigo, este escrito pelo socialista George Bernard Shaw, um dos criadores da Sociedade Fabiana. Neste artigo, Belloc aponta os erros típicos dos socialistas: pensar que todo homem é tolo como eles próprios. Novamente, entre chaves […] trago algo sobre o contexto da época para melhor entendimento ou diferenciação dos dias de hoje. Aliás, já cabe um contexto aqui: Chesterton, desgostoso com a Sociedade Fabiana da qual fez parte por um tempo, acabou, junto com Belloc, escrevendo a base do que chamaram de Distributismo ou Distribucionismo, que seria, segundo eles, melhor modelo econômico e sistema socioeconômico que o Capitalismo ou o Socialismo. Com base neste entendimento, o leitor terá então o contexto deste artigo.


Meu caro Shaw,

Deixe-me começar jogando a você uma coroa de flores que não esconde nenhum tijolo. Você tem duas qualidades como escritor, sagacidade e clareza; como homem uma qualidade mais eminente, a fome e a sede de justiça. Essas três qualidades são tão raramente encontradas em combinação que sua posse delas fez de você um líder muito apropriado entre seu próprio povo. Pelas palavras “seu próprio povo” quero dizer as pessoas que mantêm a mesma filosofia que você.

Agora para o senão. Embora você mantenha em uma combinação única essas três excelências, você não possui uma posse que é essencial para a filosofia social, que é a compreensão do homem comum. Portanto, é meu dever, respondendo-lhe, mostrar-lhe como o homem comum é servido por nossa intenção, mas prejudicado pela sua: como aqueles que restauram a propriedade onde ela foi destruída (como foi destruída na Inglaterra) servem ao homem comum; enquanto os esforços contrários do Capitalismo e do Comunismo (que é irmão gêmeo do Capitalismo) o desagradam.

Você fez um apelo perfeito para o Comunismo como um remédio para o Capitalismo. O Comunismo é isso, sem dúvida; assim como o suicídio é um remédio para a preocupação ou proibição para a embriaguez. Mas embora o Comunismo seja a solução óbvia para os males da competição, ainda assim como um eminente personagem observou recentemente (em latim) “o remédio é pior que a doença”.

Falando desse eminente personagem, não posso aplaudir muito sua preocupação com a teologia – mas proponho nestes breves presentes deixar a teologia de fora. É a Rainha das Ciências, como você descobriu com razão. É a chave para toda controvérsia que as diferenças na teologia são as bases de todas as diferenças na cultura. No entanto, deixemo-lo de fora agora e aqui, para que possamos nos concentrar melhor em nosso problema definido; se a propriedade deve ser resgatada das garras do Capitalismo e restaurada, ou destruída pelo Comunismo. Nos estados do sul da América, onde a culinária é excelente, a maior parte dos bons cozinheiros são negros. No entanto, se você estiver discutindo com um nativo da Virgínia os prós e contras de cozinhar na sala de estar, é melhor deixar de lado a questão da cor.

O que você nos diz sobre o Comunismo como um remédio para o Capitalismo, é claro, já foi dito milhares de vezes – embora você o diga com mais clareza do que a maioria. Ao dizê-lo, no entanto, você introduz certos erros em relação à nossa atitude — atitude essa que é apenas a da massa da humanidade.

Por exemplo (para dar um detalhe) você acha que temos algum ódio especial pelo Sr. Stalin. Eu não senti nada disso. Sem dúvida, se eu o conhecesse, talvez gostasse dele. Seu rosto não é pouco atraente. Além disso, você confundiu o ponto sobre suas origens políticas. Insistimos em sua ligação porque isso explica sua aceitação pelo pequeno grupo que hoje governa despoticamente os russos. Ele é evidentemente um homem do tipo bastante comum em todas as formas de vida pública. Ele está cheio de energia e quer gastar sua energia organizando assuntos humanos e ficando bem no centro das atenções, ao mesmo tempo. Ele pode ou não querer o que a maioria dos políticos quer quando avançam: dinheiro e holofotes. De qualquer forma, ele é obviamente do tipo político, e os políticos entram em suas salas por intriga, por herança, por compra — mas também por casamento. Ele entrou por casamento. É relevante falar do casamento de Stalin porque é um exemplo do tipo de coisa que agora governa a Rússia. Se me refiro ao casamento do político profissional Snooks, assinalando que Lady Snooks era filha do milionário Ministro das Belas Artes, não o faço para atacar o pobre Snooks, muito menos para cansar a Mãe Snooks com a minha impertinência, mas para explicar aos pobres tolos que chamam o governo parlamentar de “democracia” que não é nada disso [aqui ele se refere ao Governo da Irlanda que, pelo parlamento, se declarou, em 1919, livre da Inglaterra, coincidindo com a Guerra da Independência].

No entanto, esses pequenos pontos são apenas mal-entendidos pessoais, o grande problema é o seu mal entendimento da nossa doutrina política; oh! vocês, comunistas generosos, mas tristemente isolados, dessecados e desumanos! Que se tome como base de tudo que não estamos ocupados em distribuir poder aquisitivo ou renda ou chalés com pedacinhos de horta. Estamos em busca de uma melhor distribuição da Propriedade. Não estamos particularmente preocupados com o camponês, exceto como um exemplo de propriedade sólida em ação. Aqui, novamente, há um mal-entendido pessoal.

Encontro continuamente, em meios intelectuais, sua acusação de que pessoas como eu e meus amigos (e particularmente o fundador deste jornal) buscam um camponês ideal, muito diferente da coisa real. Bem, eu convivi intimamente com camponeses toda a minha vida. Trabalhei em uma fazenda por um ano da minha vida e o fiz em minha própria terra por muitos anos. Posso arar, ou pelo menos podia quando era jovem (é como dirigir um barco em um mar agitado). Aprendi também a colher à moda antiga e me ensinaram a difícil arte da semeadura a céu aberto. Também passei um ano feliz da minha vida com camponeses em quartos aquartelados. Mas isso é a propósito e só para mostrar que, se amo um campesinato, também o conheço.

Volto a dizer que nem eu nem nenhum daqueles com quem trabalho estamos preocupados com o camponês só porque ele cultiva a terra, mas também porque ele consolida a propriedade na qual está enraizado e para quem consideramos ser a terra normal e necessária ao homem. Estamos tão preocupados com os carpinteiros e construtores como com os camponeses; com comerciantes, onde o comércio é devidamente limitado [Hilaire tinha o entendimento que restringir quem podia vender era necessário. Hoje sabemos que isto gera também privilégios para quem outorga e para quem desfruta do ponto de venda, mas encarece produtos ao consumidor. Uma economia de livre mercado regularia as condições do comércio, segundo a prática nos mostra e a teoria dos economistas da Escola Austríaca também] e humano, com artesãos de todo tipo. Estamos preocupados com o fato de os homens possuírem, como indivíduos e chefes de família, os instrumentos de seu comércio, suas casas, e alguns participarem de aluguéis e lucros. Preocupamo-nos com isso como objeto vital e central em todo esforço político, pois acreditamos que, sem propriedade, os homens caem na escravidão.

Preocupamo-nos com isso como objeto vital e central em todo esforço político, pois acreditamos que, sem propriedade, os homens caem na escravidão.

A propriedade é normal para o homem.

Hilaire Belloc

Uma maneira de dizer que vai ser irritante para você, mas à qual eu imploro que você se acostume, é esta: “A propriedade é normal para o homem”. A propriedade é uma função normal da humanidade. Todos nós sabemos de cor, pela repetição cansativa, a falsa doutrina de que não existe tal coisa; que todas as coisas se fundem em todas as outras coisas. Foi a grande descoberta da intelligentsia suburbana há uma vida, e eles ainda se agarram a ela. Nós não.

Pensamos que existe um homem, e que o homem é bem diferente de qualquer outra coisa. Pensamos que um tipo completo é estável e que, portanto, a natureza do homem é estável. É claro que há desvios do normal; a variação é possível dentro de limites; mas empurre-o longe demais e você distorce e tortura o objeto de seu experimento. Ao analisar qualquer coisa humana, você deve analisá-la em termos de humanidade normal. Na medida em que você abandona essa regra você se aproxima do absurdo ou do insano e na medida em que você tenta colocar em prática doutrinas absurdas e insanas você se aproxima do Poço.

Na análise comunista da sociedade humana, adota-se uma visão falsa, não porque a afirmação real seja falsa, mas porque a linha de análise é anormal. Um homem pode analisar sua mãe de qualquer uma das cinquenta maneiras diferentes. Ele pode considerá-la biologicamente, ginecologicamente, patologicamente, quimicamente, filoprogentivicamente. Se for comunista, provavelmente encontrará uma palavra ainda mais longa para analisar seu pai. Mas a maneira normal e humana de considerar a mãe é algo muito diferente, e se você a considerar de alguma forma não humana e não normal, cairá na crueldade e na loucura.

Assim é com a Propriedade. Você pode analisar as funções sociais dos homens em qualquer uma das cinquenta linhas diferentes. Assim, você pode falar em “resolver o problema da Distribuição”, ou “o problema da Produção”, ou o “problema da Organização”, mas, se nesta conversa você esquecer que o homem deseja possuir a terra para que possa ser livre e deseja ser livre para cumprir seu fim e se conformar com sua natureza, então você faz do homem o mero sujeito de um experimento em alguma teoria desumana; você o deforma e o destrói, assim como aqueles que torcem ossos ou cortam artérias. Você ainda não entende que, longe de criar competição de propriedade e tornar os homens inimigos uns dos outros, ela só é preservada por costumes e leis que restringem a competição.

• Não somos, como você estranhamente imagina, exceções. Não somos um pequeno círculo ou camarilha. Falamos pelo que está em toda parte pelo homem comum, o homem normal, o homem que tenta realizar seu ser e viver de acordo com os instintos que lhe são nativos e desfrutá-los em sua proporção correta. Se encontrarmos um inglês faminto, propomos-lhe uma alcatra grelhada e um copo de cerveja. Você pode nos culpar, gritando que somos monstros, não sendo vegetarianos nem proibicionistas. Admitimos a acusação de que permitimos carne e cerveja; mas certamente o faminto inglês estará do nosso lado e contra o seu.

Assim é com a Restauração de Bens. Nossa grande chance está justamente nisso, que estamos apelando para o homem comum; e é bem possível (não creio que seja provável) que mesmo neste último estágio repugnante da decadência capitalista, nesta fase mortal final do capitalismo industrial urbano que se abateu sobre o corpo morto da propriedade, possamos, em algum pequeno grau, levantar Propriedade dos mortos. Tente, peço-lhe, entender de nós o que o Poeta diz de sua própria tribo:

… Alguma parte dessa forte maestria
Que embora vacilemos, falhemos e morramos
Sustenta e glorifica nosso ofício: —
O Poder de fazer e julgar as coisas feitas.

. . . Some part of that strong mastery
Which though ive falter, fail, and die
Upholds and glorifies our trade: —
The Power to make, and judge things made.

H. BELLOC

Tradução e notas em azul de Cláudio Toldo.

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