Sendero Luminoso, o partido maoísta assassino do Peru

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No início dos anos 1980, momento que a maioria dos países da América Latina fazia a transição de regimes militares para governos democráticos, uma fração radical do partido comunista peruano declarou guerra ao Estado nacional recém eleito. O anúncio se deu no dia das primeiras eleições diretas depois de 12 anos, por meio da destruição de material eleitoral na cidade de Ayacucho, o que a princípio passou despercebido pelas autoridades.

Duas semanas mais tarde, a aparição de cães mortos pendurados nos postes de luz do centro de Lima alertou o governo, a mídia e a população para as ações do grupo. Assim, inaugurou-se o terror do Partido Comunista Peruano “Sendero Luminoso”, que estava instalado nas regiões mais pobres do país.

A razão alegada de atuação armada do Sendero Luminoso merece ser contextualizada. E para isso devemos falar de Manuel Rubén Abimael Guzmán Reynoso, ou “Presidente Gonzalo”, um professor de filosofia da Universidade San Cristóbal de Huamanga, em Ayacucho, região central nos Andes peruanos.

Apaixonado pelo marxismo-leninismo-maoísmo, em 1962, Abimael Guzmán começou a lecionar na universidade e começou a aprender a língua quéchua, falada por parte da população indígena do Peru, tornando-se então influente sobre esta comunidade pobre e pouco instruída. Cresceu também sua atividade nos círculos socialistas e em pouco tempo era o líder do Partido Comunista do Peru, chamado popularmente como Sendero Luminoso, ou caminho iluminado.

O nome foi extraído da frase em Siete Ensayos de Interpretación de La Realidad Peruana, livro de José Carlos Mariategui: “El marxismo-leninismo es el sendero luminoso del futuro”.

Abimael Guzmán se tornou um messias e se autoconsiderava como a “quarta espada” do pensamento marxista no mundo, sendo as três anteriores o próprio Marx, Lenin e Mao Tsé-Tung.

Principalmente na região de Ayacucho, com população predominantemente indígena, o governo militar do Peru entre 1968 e 1980 não teve sucesso em melhorar as condições da população, e o resultado foi o crescimento do sentimento de frustração no campesinato, alimentados ideologicamente por Guzmán.

O governo do general Manuel Arturo Odría Amoretti havia justamente levado a universidade para a região em 1959 para tentar promover o desenvolvimento local; mas a Universidade de San Cristóbal de Huamanga só estimulou o marxismo e o espírito revolucionário. A emergência educacional da região mais pobre do Peru misturada à estrutura agrária mais arcaica do país culminou na ascensão do Sendero Luminoso. O partido se capilarizou despercebidamente durante todo o período militar de modo que no início dos anos 1980 estava preparado para se lançar no conflito armado.

Para o Sendero Luminoso, o Estado nacional era uma ditadura de latifundiários feudais e grandes burgueses apoiada pelo imperialismo norte-americano. Como pensa todo revolucionário socialista, o capitalismo se sustenta pela violência, e a única maneira de emancipar o povo peruano era responder na mesma moeda: com violência revolucionária.

Em busca de derrubar, como dizem os socialistas, o Estado latifundiário-burguês, Abimael Guzmán formulou uma doutrina à base da revolução chinesa de Mao Tsé-Tung. A revolução deveria caminhar do campo para a cidade tendo como protagonistas os camponeses e indígenas.

Pensamento Gonzalo

Chamada de Pensamento Gonzalo por conta do pseudônimo de Guzmán, a doutrina senderista previa Cotas de Sangue, a concentração do poder do partido em um único líder, e a aniquilação, ou seja, o assassinato seletivo de figuras públicas, políticos e outros líderes. Além disso, havia a propagação de que a libertação das mulheres se daria pela luta armada; e isto se refletiu na grande adesão delas aos quadros do partido.

Cotas de Sangue era o nome dado à exigência do partido de que seus militantes estivessem prontos a matar, a morrer e a usar da violência extrema a qualquer momento. A adoção da Cota tinha como objetivo acelerar o conflito contra o Estado peruano, e como justificativa ideológica a concepção de que os senderistas ainda que fossem violentos jamais superariam a violência e morte resultante da miséria e da desigualdade social criada pelo capitalismo.

Durante o ano de 1980, o Sendero Luminoso avançou rapidamente sobre o interior peruano, e os guerrilheiros se integravam à vida dos camponeses pobres. Tinham assim, sua própria milícia.

Camarada Nora

A extrema violência dos senderistas tinha uma líder: a Camarada Norah, ou Augusta Deyanira La Torre Carrasco, mulher de Abimael Guzmán. Ela era reconhecida como a número dois no comando do Sendero Luminoso e muito influente sobre o marido e a comunidade entorno. Camarada Norah ia ao front de batalha, enquanto Guzmán ficava em casa.

La Torre havia sido uma adolescente inocente e alegre, embora com convicções firmes que vinham dos pais, Carlos La Torre Córdova, líder do Partido Comunista do Peru, e Délia Carrasco. A família, incoerentemente com o que pregava, tinha grande extensão de terra em Ayacucho.

Augusta La Torre se casou com Abimael Guzmán em fevereiro de 1964, e dali até 1980, cresceu neles a ideia revolucionária. Em algum momento de sua militância, La Torre adotou o pseudônimo de Camarada Norah, em homenagem a Eleonora West, personagem disposta a morrer do romance “A 25ª Hora”, de Virgil Gheorghiu.

Primeiro Abimael Guzmán e depois o casal viajaram para a China onde treinaram com veteranos da Longa Marcha de Mao e aprenderam táticas para emboscadas, assaltos, movimentos de colunas e preparação de dispositivos de demolição. Quando voltaram ao Peru, ambos haviam reafirmado suas crenças maoístas: a guerra para instaurar o comunismo tinha que ser desencadeada primeiro no campo, ou do campo, e depois se espalhar para as cidades.

Guzmán nunca esteve em contato direto com os camponeses, Augusta era quem fazia esta parte de estar no campo. Ele seria o responsável pela grande revolução cultural necessária para mudar a forma de pensar do povo. Ela iria para a prática terrorista.

Sem La Torre, Guzmán teria sido apenas um teórico. Ela tinha carisma, o que era necessário para convencer as pessoas. Ela falava o quíchua e conhecia a identidade local.

A líder sanguinária surgiu então em 24 de dezembro de 1980. Camarada Norah, liderou um ataque à fazenda Ayzarca, onde mataram o proprietário e cortaram sua língua. A operação foi o primeiro assassinato do Sendero Luminoso. Daquele momento em diante viveram na clandestinidade.

Camarada Míriam

Elena Iparraguirre entrou na organização por volta de 1973 por meio de La Torre, e assumiu a terceira posição na hierarquia. Camarada Míriam, como se autodenominou, começou a ter mais protagonismo também na prática revolucionária e sua presença foi fundamental para desencadear a luta armada.

Os três membros do Comitê Permanente deram a ordem para o “início da luta armada” em maio de 1980 com a destruição de material de campanha e os cachorros mortos pendurados em postes, e ditaram as estratégias que resultaram na execução dos ataques subsequentes.

Ao crescimento da influência da Camarada Míriam no Sendero Luminoso e sua relação com Abimael Guzmán, uma situação de doença começou a aparecer na Camarada Norah, que em 1988 morreu de forma abrupta e misteriosa.

O velório da camarada Nora em novembro de 1988 foi gravado em vídeo pelos próprios senderistas. Este vídeo foi apreendido pela polícia peruana em 1991 e é tudo o que se sabe sobre a morte de Augusta de La Torre. Não se sabe até hoje a causa da morte, nem encontraram seu corpo.

A fala de Guzmán ao lado do corpo da ex-mulher dá a entender um suicídio: “Capaz de aniquilar a própria vida para não levantar a mão contra o Partido… Na infeliz confusão de sua nervosa solidão, preferiu aniquilar-se, extinguir-se”.

Há a suspeita de que um relacionamento entre Iparraguirre e Guzmán teria desencadeado a doença ou o suicídio, mas ambos negaram esta situação e mantiveram a versão de que La Torre havia morrido de um problema cardíaco. A partir da morte de Camarada Norah, Camarada Míriam se tornou então a esposa e a número dois do Sendero Luminoso.

Outro vídeo apreendido em 1991, mostra a cúpula senderista num momento de descontração meses depois, em 1989, dançando na casa chamada Monte Rico. Era o primeiro congresso do Sendero Luminoso, onde tiraram fotos com o líder e criaram uma hierarquia de comando e funções.

Os Sinchis

Em 12 de outubro de 1981, quando o Sendero Luminoso atacou o posto policial de Tambo, na província de La Mar, em Ayacucho, o presidente Fernando Belaunde Terry declarou estado de emergência e enviou 193 policiais, incluindo 40 Sinchis, a unidade de paraquedistas da Polícia Nacional do Peru.

Os Sinchis eram especializados em liquidar guerrilhas. Encapuzados e sem identificação, estavam autorizados a utilizar de qualquer força contra os militantes do Sendero.

Os senderistas não eram guerrilheiros convencionais, não usavam uniformes, frequentemente não tinham armas e acampavam dentro das aldeias. Um inimigo invisível facilmente confundido com os camponeses. O resultado foi que os Sinchis mataram guerrilheiros, mas também camponeses que nada tinham a ver com eles.

Presos no fogo cruzado entre senderistas e Sinchis, os camponeses começaram a se incomodar cada vez mais com as restrições de mobilidade e comércio, com o modelo de gestão dos senderistas e com o recrutamento obrigatório de jovens impostos pelo partido.

Levantes camponeses começaram a ocorrer e o alto comando senderista não reagiu bem a essa situação, instruindo os militantes a usarem de violência e fuzilar os próprios camponeses para abafar as revoltas. Qualquer crítica contra as imposições senderistas era automaticamente tomada como conspiração contra o partido e duramente condenada.

Essa postura mudou a relação entre camponeses e senderistas e aumentou a hostilidade, e o acontecimento mais emblemático dessa transição foi o massacre de Lucanamarca.

O massacre de Lucanamarca

Em 3 de abril de 1983, em Santiago de Lucanamarca, um pequeno povoado da província de Huanca Sancos, 69 camponeses foram massacrados pelo Sendero Luminoso. Abimael Guzmán alegou que o massacre foi uma resposta a uma “ação militar reacionária”. Ele se referia ao que aconteceu doze dias antes, em 22 de março, quando vários membros das rondas camponesas, uma organização de autodefesa surgida entre os camponeses, assassinaram o comandante senderista Olegário Curitomay em Lucanamarca. Olegário foi levado à praça principal da cidade, apedrejado, esfaqueado, depois levou um tiro e seu corpo foi incendiado.

A resposta de Guzmán foi a reunião de 60 militantes do Sendero Luminoso, que entraram na província de Ruanca Sancos, e seguindo pelas cidades de Yanaccollpa, Ataccara, Llacchua, Muylacruz até Lucanamarca, sob o pretexto de uma sanção exemplar, deixou um rastro de sangue. 69 pessoas foram mortas a facão e machado, algumas baleadas na cabeça. Entre as vítimas havia 18 crianças, incluindo uma que tinha apenas seis meses de idade. A ação tinha como líderes os senderistas Hildebrando Pérez Huarancca e a Camarada Nanci, ou Margie Clavo Peralta, que chegou a segunda mulher em comando da organização guerrilheira.

A política senderista de aniquilação total dos inimigos mostrada por Guzmán acabou saindo pela culatra, e Lucanamarca é considerada a grande responsável pela derrocada do grupo guerrilheiro. Foi por conta desta política que a maior parte da população rural passou a repudiar o Sendero Luminoso e se organizou em comitês de autodefesa camponesa com objetivo de se livrar do domínio senderista. Estes comitês eram amplamente apoiados pelo Estado e foram uma peça-chave para a derrubada do Partido Comunista Peruano.

No dia 10 de Janeiro de 2003, 20 anos após o massacre, por iniciativa da Comisión de la Verdad y Reconciliación, se realizou uma cerimónia de entrega dos restos mortais das 69 vítimas aos seus familiares e o correspondente enterro digno no cemitério de Santiago de Lucanamarca.

O massacre de Soras

Em 16 de julho de 1984, com o sequestro de um ônibus da empresa Cabanino por uma coluna de senderistas, ocorreu o pior episódio do terrorismo senderista em número de mortos numa só investida. Eles se dirigiram para a cidade de Soras, na província de Sucre; e, ao longo da rota, mataram mais de 100 pessoas.

No fim de 1983, os terroristas submeteram três líderes comunitários daquela cidade a um julgamento popular e os obrigaram a se ajoelhar. Esses homens foram executados na frente de sua comunidade.

Os Sinchis enfrentaram os terroristas no dia 8 de dezembro e mataram um deles. Em março de 1984, repeliram novamente uma incursão de cerca de 70 terroristas; mas as forças Sinchis tinham que sair da região e deixaram instruções à população para tomar medidas de defesa sabendo que a vingança viria.

E veio em 16 de julho de 1984. Cerca de 40 senderistas disfarçados de policiais e soldados sequestraram um ônibus da empresa de transporte que fazia a rota Lima-Soras na cidade de Sontococha. O grupo era comandado por Víctor Quispe Palomino, o Camarada José, que no ano anterior havia participado do massacre de Lucanamarca.

Uma vez no ônibus, os terroristas mataram 22 passageiros do sexo masculino. No trajeto, percorreram as cidades de Challapuquio, Badopampa, Doce Corral, Chaupihuasi e Tranca. A cada parada, entravam nas aldeias e cometiam atos de tortura e assassinato. Em Doce Corral, 30 pessoas foram assassinadas, incluindo comerciantes da cidade de Cuzcoque, que estavam ali para fazer vendas. Em Chaupihuasi formaram duas filas com a população que veio receber os passageiros, e espancaram estas pessoas até a morte. O ônibus foi abandonado em Tranca.

Chegaram em Soras a pé, empunhando lanternas, e tomaram a cidade sem resistência. Nesse local, 18 pessoas foram assassinadas. Os senderistas escreveram com sangue nas paredes: “É assim que morrem os informantes”.

O número total de vítimas varia de acordo com o órgão que investigou o massacre. A Comissão Nacional de Direitos Humanos estima que 109 pessoas foram mortas. O Ministério Público Peruano dá o número de 117 massacrados pelos senderistas.

Atualmente, Víctor Quispe Palomino, que comandou o ataque, está em liberdade e lidera um grupo remanescente do Sendero Luminoso no vale localizado entre os rios Apurímac, Ene e Mantaro, que atravessam Ayacucho e Cusco.

Os atentados de 1992

Mal o ano de 1992 havia começado, e o Sendero Luminoso já iniciava seus atentados.

María Elena Moyano, vice-prefeita à época da cidade de Villa Él Salvador, e antes uma liderança local que lutava por condições mais justas para as comunidades pobres, foi assassinada em 15 de fevereiro, por criticar o Sendero Luminoso. Foi morta na frente dos dois filhos em um evento comunitário. Os assassinos primeiro atiraram nela e depois explodiram seu corpo com dinamite.

Em junho daquele ano, um carro-bomba explodiu ao lado da emissora de televisão Frecuencia Latina, perto da meia-noite, destruindo o prédio e seus arredores e matando o jornalista Alejandro Pérez e os guardas Javier Requis e Teddy Hidalgo.

E, em 16 de julho, houve o “Atentado de Tarata”. O Sendero Luminoso causou a morte de 25 pessoas e feriu pelo menos outras duzentas num atentado à bomba no distrito de Miraflores, na Rua Tarata, em Lima. Dois caminhões, cada um com mil quilos de explosivos, explodiram por volta das nove horas da noite ao lado do Banco de Credito del Peru. A explosão destruiu ou danificou 183 casas, 400 empresas e 63 carros estacionados. Os atentados foram o início de ataques naquela semana que ao final acarretou em 40 mortos.

Operación Victória

Abimael Guzmán foi capturado em setembro de 1992 numa operação chamada Vitória. Estava escondido na casa de amigos, um arquiteto e uma professora de dança, em Lima. Junto com ele estava Elena Iparraguirre, a Camarada Míriam, e os principais líderes do grupo.

Depois disso, os quadros importantes do Sendero foram caindo aos poucos, até que a guerra foi considerada como encerrada no fim daquele ano.

Margie Clavo Peralta, Osmán Morote, Florindo Flores, Óscar Ramírez, María Pantoja, Laura Zambrano, Florentino Cerrón, Edmundo Cox, Margot Liendo, além de Guzmán e Elena Iparraguirre foram condenados a prisão perpétua pelos crimes do atentado de Tarata.

Alguns achavam o Presidente Gonzalo invencível; e, assim, como forma de dissuasão dos membros do Sendero Luminoso em outras partes do país, o governo peruano decidiu fazer um desfile público dos prisioneiros em frente as câmeras.

A Camarada Nancy (Margie Clavo Peralta) disse na sua apresentação: “Viva o partido e a revolução! Viva a guerra popular! A guerra popular inevitavelmente triunfará sobre a ditadura que cometeu genocídio e vendeu nosso país. Continue lutando na guerra popular. Defenda a vida do presidente Gonzalo. O comunismo através da guerra popular. A guerra popular inevitavelmente triunfará. Viva o Exército Popular de Libertação! Viva a nova ordem! Viva a República Popular do Peru! Viva o presidente Gonzalo, líder do partido e a revolução.”

Abimael Guzmán foi mostrado em uma jaula, vestindo um pijama de prisioneiro, como forma de destruir o mito.

Caminho que outros ainda caminham

A campanha do Sendero Luminoso levou à morte 13.721 pessoas, a maioria camponeses pobres que foram mortos por se recusarem a participar da luta armada.

Em 2010, Iparraguirre e Guzmán, mesmo presos, se casaram. Ela ainda cumpre prisão perpétua. Guzmán morreu na prisão em 11 de setembro de 2021, aos 86 anos.

Em agosto de 2010, policiais encontraram um laboratório clandestino de cocaína na floresta tropical do Vale dos rios Ene e Apurímac, no sudeste do Peru. Segundo as autoridades locais, a guerrilha do Sendero Luminoso começou a usar terras desapropriadas do Vale para cultivar coca e produzir cocaína.

O Sendero Luminoso ainda tem raízes no Peru e seus quadros políticos estão se fortalecendo com o governo atual de esquerda.

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